O CARRO & O GATO
Um conto sobre o
imprevisível
Viagens a passeio, num feriado belamente
prolongado, exigem um mínimo de programação. Programar é fazer previsão. E
provisão. Uma família deve prover-se de coisas básicas para viajar, calcular o
quanto se vai gastar (no caso dos sem-muito-dinheiro, que é o meu), lembrar as
roupas, toalhas, casacos, alimento. Há muito mais. E como só podem ser coisas
pequenas, miúdas, pelo limite do espaço do automóvel, elas são esquecidas ou
perdidas ao longo da viagem.
A família Birdville
resolveu levar todos dessa vez. Só não levou o papagaio porque não tinham
um. Mas, tinham uma cadela e um gato com rabo cotó (um carro o atropelara
quando ainda era filhote). E a menina caçula tinha também uma colega com
vontade de conhecer as montanhas da Serra da Mantiqueira. Por muito pouco a
colega não levou da mesa forma o seu totó. Foram todos. Meio apertadamente, mas
foram.
A viagem estava boa, o tempo, agradável. Tudo
dera certo. Porém, na hora da volta, o carro pifou no meio de uma estada de
terra. Saltaram todos e vieram andando até o próximo arraial. O senhor
Birdville fechou bem as portas e as janelas do carro e liderou a tropa em sua
caminhada forçada até à civilização. Conseguiu ajuda com o sêo Márcio, o “homem
do caminhão”, que rebocou o carro até à oficina mecânica. Aconteceu num
domingo.
O conserto do carro foi rendendo e a família
foi ficando. Sêo Márcio levou os cinco, mais a cadela, até uma pousada num
distrito próximo, onde se aceitava cartão magnético. O dinheiro em espécie foi
dizimado pelo custo do autossocorro, os gastos adicionais comuns, as
lembrancinhas. Restou o cartão. Poderia a família retornar de ônibus, não fosse
o impeditivo da viagem de animais soltos, fora da caixinha. E a cadela não era
pequena, não tinha caixa para transporte. Deixá-la na pousada e vir buscar
depois, nem pensar.
A cadela não deu problema. Quem deu problema
foi o gato, que se afugentou quando a arrumadeira abriu a porta e levantou o
colchão bruscamente. O felino não quis saber de relacionamentos com gente
estranha – gato de apartamento, cuidado no carpete, que corre atrás de bolinha
de papel que lhe jogam, em vez de caçar ratos ou passarinhos. No seio da
floresta, seu instinto se aguçou. Subiu na janela do quarto, deu um pulo e foi
parar num buraco do telhado da casa vizinha. Aí, uma tropa se lançou
solidariamente no resgate causando-lhe o pavor final que precisava sentir para
se atirar no meio do mato, e transpassou cercas e quintais.
Com aquele exército de bravos buscadores
andando pela encosta do morro gritando o seu nome, não apareceria de jeito
nenhum. Se fosse cachorro, atenderia. Se fosse a cadelinha, retornava de
pronto. Na verdade, nem sumiria por medo, ao contrário, mostraria seus dentes
afiados e latiria ao ver uma arrumadeira intrusa avançando o seu território. Se
fosse gente, essa escapada seria uma demonstração de arrogante misantropia. Ou
algum acidente de percurso. Mas, o animal tem o seu direito a ser misantropo. Ele
pode.
A menina mais velha chegou a cogitar que a
escapada fosse um sinal de vingança do gato, por ter sido deixado no carro,
quando ele pifou, na estrada, ao relento, ao Deus-dará. Ficou o coitado boas
horas sozinho dentro de uma caixinha de plástico, no meio da bagagem mexida no
balanço do carro, observando o voo apetitoso dos pássaros ao redor, lá fora,
livres. Talvez, ele agora soubesse o que é viver em gaiola como muitos pássaros
vivem nesse mundo-cão, ou melhor, mundo-gato. Gato sofre mais. Se pudesse
falar, quem sabe não tivesse pedido polidamente para ficar em casa, em vez de
viajar, cuidaria do lar, pois todos sabem que os ratos fazem a festa quando
todos saem de casa. Ainda argumentou dando algumas miadas, mas não deu certo, o
seu dialeto é muito difícil, e os humanos não se entendem nem entre eles próprios,
o que dirá na língua discretíssima dos gatos!
Vendo que as crianças começavam a verter
lágrimas pelo bichano sumido, o pai resolveu que daria uma recompensa
financeira a quem o encontrasse. Não se falava em outra coisa, na localidade: o
resgate pelo gato sem rabo. A família subiu a encosta do morro, sob chuva,
caçando o felino pelos cantos, mas ele não era bobo e não se deixou encontrar.
O senhor Birdville ficou no arraial para
encontrar o gato, e o restante da família retornou pagando frete. No dia
seguinte, foi chamado às pressas, na rua:
- Senhor Birdville! Senhor Birdville! O gato! A
arrumadeira encontrou o gato!
O homem saiu em disparada, entrou no quarto,
ficou a sós com o fujão. Abriu a porta da caixinha e deixou que o gato
entrasse. Fugiu quando a arrumadeira levantava o colchão e retornou quando a
mesma iniciava a faxina do quarto. Dessa vez, a moça teve o reflexo de fechar
as portas e as janelas, antes de chamar o senhor Birdville. Vale a metade do
valor do resgate.
Já o carro enguiçado infelizmente não voltou
sorrateiro da oficina entrando no quarto pela janela e fazendo a mesma surpresa
do gato. E o seu resgate é bem mais caro.
O senhor Birdville ligou para a menina mais
nova e disse que havia encontrado o gato. E ainda brincou dizendo que a
felicidade nas redondezas foi tanta, que comemoraram fazendo um churrasquinho
do próprio gato. A menina não achou a menor graça.
Mas, isso era previsível.
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