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domingo, 30 de novembro de 2014

O CARRO & O GATO
Um conto sobre o imprevisível
 
Viagens a passeio, num feriado belamente prolongado, exigem um mínimo de programação. Programar é fazer previsão. E provisão. Uma família deve prover-se de coisas básicas para viajar, calcular o quanto se vai gastar (no caso dos sem-muito-dinheiro, que é o meu), lembrar as roupas, toalhas, casacos, alimento. Há muito mais. E como só podem ser coisas pequenas, miúdas, pelo limite do espaço do automóvel, elas são esquecidas ou perdidas ao longo da viagem.
 
A família Birdville resolveu levar todos dessa vez. Só não levou o papagaio porque não tinham um. Mas, tinham uma cadela e um gato com rabo cotó (um carro o atropelara quando ainda era filhote). E a menina caçula tinha também uma colega com vontade de conhecer as montanhas da Serra da Mantiqueira. Por muito pouco a colega não levou da mesa forma o seu totó. Foram todos. Meio apertadamente, mas foram.
 
A viagem estava boa, o tempo, agradável. Tudo dera certo. Porém, na hora da volta, o carro pifou no meio de uma estada de terra. Saltaram todos e vieram andando até o próximo arraial. O senhor Birdville fechou bem as portas e as janelas do carro e liderou a tropa em sua caminhada forçada até à civilização. Conseguiu ajuda com o sêo Márcio, o “homem do caminhão”, que rebocou o carro até à oficina mecânica. Aconteceu num domingo.
 
O conserto do carro foi rendendo e a família foi ficando. Sêo Márcio levou os cinco, mais a cadela, até uma pousada num distrito próximo, onde se aceitava cartão magnético. O dinheiro em espécie foi dizimado pelo custo do autossocorro, os gastos adicionais comuns, as lembrancinhas. Restou o cartão. Poderia a família retornar de ônibus, não fosse o impeditivo da viagem de animais soltos, fora da caixinha. E a cadela não era pequena, não tinha caixa para transporte. Deixá-la na pousada e vir buscar depois, nem pensar.
 
A cadela não deu problema. Quem deu problema foi o gato, que se afugentou quando a arrumadeira abriu a porta e levantou o colchão bruscamente. O felino não quis saber de relacionamentos com gente estranha – gato de apartamento, cuidado no carpete, que corre atrás de bolinha de papel que lhe jogam, em vez de caçar ratos ou passarinhos. No seio da floresta, seu instinto se aguçou. Subiu na janela do quarto, deu um pulo e foi parar num buraco do telhado da casa vizinha. Aí, uma tropa se lançou solidariamente no resgate causando-lhe o pavor final que precisava sentir para se atirar no meio do mato, e transpassou cercas e quintais.
 
Com aquele exército de bravos buscadores andando pela encosta do morro gritando o seu nome, não apareceria de jeito nenhum. Se fosse cachorro, atenderia. Se fosse a cadelinha, retornava de pronto. Na verdade, nem sumiria por medo, ao contrário, mostraria seus dentes afiados e latiria ao ver uma arrumadeira intrusa avançando o seu território. Se fosse gente, essa escapada seria uma demonstração de arrogante misantropia. Ou algum acidente de percurso. Mas, o animal tem o seu direito a ser misantropo. Ele pode.
 
A menina mais velha chegou a cogitar que a escapada fosse um sinal de vingança do gato, por ter sido deixado no carro, quando ele pifou, na estrada, ao relento, ao Deus-dará. Ficou o coitado boas horas sozinho dentro de uma caixinha de plástico, no meio da bagagem mexida no balanço do carro, observando o voo apetitoso dos pássaros ao redor, lá fora, livres. Talvez, ele agora soubesse o que é viver em gaiola como muitos pássaros vivem nesse mundo-cão, ou melhor, mundo-gato. Gato sofre mais. Se pudesse falar, quem sabe não tivesse pedido polidamente para ficar em casa, em vez de viajar, cuidaria do lar, pois todos sabem que os ratos fazem a festa quando todos saem de casa. Ainda argumentou dando algumas miadas, mas não deu certo, o seu dialeto é muito difícil, e os humanos não se entendem nem entre eles próprios, o que dirá na língua discretíssima dos gatos!
 
Vendo que as crianças começavam a verter lágrimas pelo bichano sumido, o pai resolveu que daria uma recompensa financeira a quem o encontrasse. Não se falava em outra coisa, na localidade: o resgate pelo gato sem rabo. A família subiu a encosta do morro, sob chuva, caçando o felino pelos cantos, mas ele não era bobo e não se deixou encontrar.
 
O senhor Birdville ficou no arraial para encontrar o gato, e o restante da família retornou pagando frete. No dia seguinte, foi chamado às pressas, na rua:
 
- Senhor Birdville! Senhor Birdville! O gato! A arrumadeira encontrou o gato!
 
O homem saiu em disparada, entrou no quarto, ficou a sós com o fujão. Abriu a porta da caixinha e deixou que o gato entrasse. Fugiu quando a arrumadeira levantava o colchão e retornou quando a mesma iniciava a faxina do quarto. Dessa vez, a moça teve o reflexo de fechar as portas e as janelas, antes de chamar o senhor Birdville. Vale a metade do valor do resgate.
 
Já o carro enguiçado infelizmente não voltou sorrateiro da oficina entrando no quarto pela janela e fazendo a mesma surpresa do gato. E o seu resgate é bem mais caro.
 
O senhor Birdville ligou para a menina mais nova e disse que havia encontrado o gato. E ainda brincou dizendo que a felicidade nas redondezas foi tanta, que comemoraram fazendo um churrasquinho do próprio gato. A menina não achou a menor graça.
 
Mas, isso era previsível.
 

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