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domingo, 24 de agosto de 2014


 
A CIGARRA & A FORMIGA
Parábola da vagabundagem dos artistas

Era uma vez um formigueiro. Dentro de um terreno baldio, formigas viviam normalmente suas vidas trabalhando, trabalhando, trabalhando. A rainha, não. Quer dizer, o seu ofício era ser rainha.

Formigas vermelhas, chamadas saúvas, há muito reivindicavam eleições diretas, um absurdo viver aristocraticamente em pleno século XXI. Entretanto, a rainha perdia o sono só de imaginar um governo de saúvas. Eram conhecidas pela sua fome voraz, se deixasse, elas acabavam com a folhagem de todo o terreno. E se chegassem ao poder, abocanhariam sem dó as hortas da vizinhança, pondo em risco a integridade do reino.

A tradição, porém, falava mais alto entre elas. Há milhões de anos, sempre foi assim e não eram alguns seculozinhos, no fim dos tempos, que iriam mudar as coisas. Na verdade, as formigas tinham sido gente, um dia, num passado remoto, e de tanto adotarem um modelo coletivista em que a força do indivíduo não contava mais, a natureza houve por bem adotar uma adaptação, transformando essa gente em inseto. A civilização coletivista evoluiu para um estado em que o coletivo era a importância maior, suprema e soberana.

Trabalhavam, trabalhavam. O trabalho era seu Deus. E Deus consentiu que elas seguissem com o seu projeto até o fim, para ver onde é que isso ia dar. Viviam assim, até um certo dia, no alto verão, quando apareceu por lá uma cigarra que vivia o tempo inteiro cantando.

As formigas começaram a sentir o incômodo. Enquanto carregavam pesados pedaços de folhas e grãos, estava a cigarra a cantar louvando o calor do verão. Sua música era bela, encantava, mas também atrapalhava a concentração geral do trabalho. Instigava a muitos. Como pode viver um inseto cantando enquanto nós damos duro, todos os dias? Indagavam-se. A rainha editou decreto proibindo que as formigas ouvissem a cigarra. Muitas começavam a sentir vontade de tocar um instrumento, mas vontade é coisa que vem e passa, e logo retornavam à interminável labuta do carregamento. Cantar, para a sociedade das formigas, era coisa de vagabundo. Em seus curtos períodos de descanso até que podiam ouvir e apreciar as músicas dos pássaros, que, aliás, também eram vagabundos.

Então, um emissário real foi enviado para falar com a cigarra diplomaticamente:

- Fui enviado pela rainha para lhe dizer que a senhora está subvertendo a ordem do lugar. Ademais, cantar no verão é fácil... Mas, quando vier o inverno, o frio, com a neve? A senhora não terá acumulado alimentos, nem preparado um abrigo. Não sente vergonha da vagabundagem artística?

A cigarra ajeitou sua viola no caule de uma planta e respondeu que a rainha estava enganada. Que numa sociedade industrial, tudo é profissão porque tudo é produto. Que o produto do padeiro é o pão, assim como o do médico é a cura do paciente e o do músico é a música que todos adoram ouvir e ajuda a aliviar o peso existencial do espírito. Que, além disso, o músico dispensa horas e horas em cima do seu instrumento, esfola os dedos, gasta garganta, investe caro em equipamentos e qualificação, enfrenta o ambiente das madrugadas... E mais: a música ajuda as formigas a produzirem mais, conforme já foi constatado em pesquisas científicas.

E quando o inverno fez o seu download, a rainha enviou novamente o emissário para falar com a cigarra, que tremia de frio ao relento.

- Ela quer que você passe o inverno cantando para nós, no formigueiro. Temos comida, água e abrigo... Mas, está um tédio danado lá dentro.

A cigarra respondeu que tudo bem. Desde que lhe fornecessem um camarim com água mineral Perrier e chá de limão.

 




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