Arquivo do blog

segunda-feira, 21 de julho de 2014

 
A COPA DE 2086

Ou volta dos que não foram
 
 
Copa do mundo de 2086, dezoito copas depois da acachapante derrota do Brasil para a Alemanha, nos idos de 2014. Ao contrário do que se prognosticava, as gerações não conseguiram mais esquecer aquele jogo. Por pouco, não descambou em conflito armado com a Argentina, pois os hermanos também tinham memória, pelo menos pra isso, e não paravam mais de implicar. Livros foram escritos e filmes feitos, teses, teorias, muita gente tentando explicar o que, afinal, ocorrera naquele jogo fatídico.

O técnico Felipão e o restante da equipe, em uníssono, já haviam falado à imprensa que o fato era "inexplicável" e ponto final, mas não adiantou. Restavam sempre as reticências, que renderam, inclusive, especulações metafísicas envolvendo possibilidades de abdução e presença de mutantes X-men em campo. Nada foi provado.

Depois que marcianos e jupiterianos fizeram contato com os terráqueos, em 2050, a copa do mundo virou "copa do cosmos". Vieram em busca de vida inteligente, não a encontraram, mas foram seduzidos pelo futebol. A FIFA estendeu o direito aos povos de outros planetas e continuou a se chamar FIFA, só que o "I" não significava mais "Internacional", mas "Intergalática". Com a escassez do petróleo, a partir de 2040, a bola passou a ser feita de um material orgânico, mas continuou sendo redonda.

A sensação da copa de 2086 era a seleção japonesa. O Japão conquistara sete campeonatos seguidos, desde 2058. Corria a estória de que seus jogadores haviam sido atingidos pela radiação nuclear da Terceira Guerra Mundial de 2016. Houve protesto de vários países, que pediam antidoping, mas a FIFA considerou que não se tratava de uma drogadição voluntária. Os jogadores tinham três metros de altura e cabelos fosforescentes, mas a mutação genética não comprometia a participação - reclamar sobre isso era cair em ação discriminatória. Ademais, depois que os venusianos chegaram, com sua pele roxa, cinco ouvidos e três olhos (o terceiro na nuca), o preconceito foi banido, de vez, do planeta. Tudo aquilo que se movesse ou produzisse sombra, era bem-vindo, e aqui absolutamente não se trata de qualquer ironia em relação à participação de Fred, em 2014.

Tudo televisionado pela Rede Cosmos, com exclusividade. Algumas seleções eram marcadas pelo favoritismo: China, Cazaquistão e Qatar, além do Japão, é claro. Os lunáticos também batiam um bolão, só que demoravam para se acostumar à gravidade da Terra e nem sempre obtinham um bom resultado. A seleção da lua carregava um mistério. Foi revelado em 2050 que o homem jamais pisara no satélite. Tudo fora uma armação, jogada de marketing da época da guerra fria, em meados do século XX. Na época, muitas donas de casa não acreditaram na estória, e elas tinham razão.

Havia uma grande preocupação nessa copa de 2086: para que seleção Mick Jagger iria torcer. Sim, o velho Stone, já com seus 142 anos de idade, ao lado de seu tataraneto. Os estádios onde tocava a banda era colorido de branco - a prevalência de médicos e enfermeiros para dar assistência à plateia. A longevidade de vida esticou-se: agora se chegava facilmente aos 130. Aposentadoria? A partir dos 110 anos. Reformas na Previdência foram feitas; legislações, atualizadas.

Mas, lá, na Rede Cosmos, dois comentaristas se destacavam: Ronaldo, o fenômeno, e Neymar, então conhecido como Vovô Tosse. A juventude achava que Neymar tinha problemas com a tuberculose, e não sabiam que "tosse" era uma variação de "tóiss", um verbete usado umas sete décadas antes, que ninguém nunca soube explicar, afinal, o que significava.

Nos bastidores, Ronaldo instigava:

- E, aí, meu véio tosse? Vamos levar essa?
- É tosse! Quer dizer, é tóiss na fita... Quer dizer, deixa pra lá...

Ronaldo, amparado por uma enfermeira, continua a implicar:

- Conta aí, véio Neymar. Que estória foi aquela, em 2014? Joelhada na vértebra, o Zuñing, da Colômbia... Quase foi parar numa cadeira de rodas. Dias depois estava no treino, com mochila nas costas, acenando pra jornalistas? Aliás, eu vi você acenando já na maca, em campo, depois das joelhada com as mãos do colombiano...

- Ô, Ronaldo, você não esqueceu isso?
- Não. Às vezes, esqueço o meu nome - Reginaldo - mas, aquilo não esqueço.

Vovô Neymar se ajeita na sua cadeira. Uma moça de branco vem ajudá-lo. O velho Tosse não deixa passar:

- Fala sério, véio! E aquele 1998, contra a França? Faltava um jogo apenas para conquistar o mundial. E você dando aquele piti... Ninguém até hoje sabe o que aconteceu afinal. Dor de barriga? Síndrome do Pânico?

O velho Tosse dá sua risada de ironia, tossindo com a mão direita fechada sobre a boca. Ronaldo ri. Muitos acham que o codinome "Fenômeno" é por causa da idade avançada. E então explica a Neymar:

- Aquilo lá foi inexplicável. Entende? Não se explica.
- Entendo, entendo - responde o velho Tosse.


Um comentário: